13/04/2008

A cigana


Feliz no jogo, infeliz no amor. Este é um dos ditados mais conhecidos no mundo. No entanto, eu conseguia contradizê-lo. Nem amor, nem dinheiro, nem amigos, nem nada que pudesse justificar um pouco a minha existência. Eu já estava chegando ao ponto de comprar o jornal só para ler o horóscopo com algumas palavras que amenizassem a minha angústia. Claro que tinha muito de emocional naquilo tudo, mas eu não conseguia distinguir o que vinha de dentro e o que realmente era obra do azar.

Um dia, caminhava sem rumo, quando topei com uma cigana que pediu para ler a minha mão. Eu disse que não tinha dinheiro, mas ela insistiu, mesmo assim. Pegou a minha mão direita e, ao deparar-se com a palma, deu um grito horroroso. Passado o susto maior, a mulher virou-se para mim e, ainda espantada, falou:

-Meu filho, sinto lhe dizer, mas você não terá mais do que um ano de vida.
-Como?! A senhora tem certeza disso?
-Absoluta. E, infelizmente, será um fim trágico.

Entrei em parafuso. Será que aquela mulher tinha mesmo a capacidade de prever o destino das pessoas? Será que não bastava a minha história infeliz, cheia de insucessos? Depois daquilo, a cigana fez mais meia dúzia de comentários, que me pareceram pertinentes, e foi embora.

Imagine você: uma pessoa que se sentia um zero à esquerda, agora com a certeza de que, em breve, nem isso seria mais. Fiquei pensando que espécie de injustiça era aquela e de onde vinha. Pensei, pensei e, de tanto pensar, cheguei à conclusão de que não tinha mais nada a perder. E, se não tinha mais nada a perder, por que não fazer tudo que ainda me era possível? Comecei a mudar a minha personalidade. Passei a ser o dom Juan das festas, a puxar papo na esquina, a me integrar, nem que fosse dando chute em pit bull, para depois contar para os conhecidos. Passei a tomar drinks e a virar noites. Joguei no bicho e acertei no milhar. Xinguei os inimigos e lavei a alma. Eu ia morrer, mas estava realizado.

Os dias passavam, os meses passavam e, quando percebi, já havia passado mais de um ano, desde aquele fatídico encontro com a cigana. Não estava doente. Pelo contrário, nunca havia me sentido tão bem na vida. Até dinheiro eu tinha! Quando estava para completar dois anos, desde a macabra leitura de mão, resolvi passar na mesma rua onde ocorreu o episódio, para ver se encontrava a dona. Cheguei num bar próximo ao local e perguntei ao balconista se ele conhecia uma cigana que ficava lendo a mão das pessoas por ali. Sem titubear, ele me respondeu:

-A Maria Mercenária? Ela morreu atropelada, há mais ou menos um ano, ali na rua do mercado. Não era uma pessoa pra se confiar. Pra você ter uma idéia, se ela pedisse para ler a mão de uma pessoa que não quisesse ou que não tivesse dinheiro, o futuro da pessoa era a morte na certa .

O balconista não entendeu nada, quando lhe falei que a amava. Uma pena que ela tenha provado do seu próprio veneno antes que eu pudesse lhe retribuir por aquela psicanálise involuntária.

07/04/2008

Vai amar a liberdade

Como se não bastasse a morte pela rotina, agora tínhamos que ficar atentos vinte e quatro horas por dia. A cidade estava realmente violenta. Não importava mais nada. Qualquer um poderia ser roubado a qualquer hora do dia ou da noite. Ninguém confiava mais em ninguém. Nem as relações instintivas sobrepunham o medo reinante. No meio dessa neurose, a inevitável luta pela sobrevivência. Por isto, todos os dias, lá estava eu no ônibus da linha 7653, que saía da zona norte para o centro da cidade. O destino, a sapataria na qual eu trabalhava há mais de vinte anos. Uma boa parte desse período, eu viajei de trem, mas os constantes atrasos e os surfistas ferroviários me desencorajaram de continuar viajando nele. Sem contar a superlotação, as drogas e os assaltos, é claro.

Bom. O fato é que, naquele dia, não sei por que, acordei com um sentimento diferente, com a pulga atrás da orelha. Suburbano normalmente não tem tempo para essas coisas. Acorda às quatro e meia da madrugada, põe uma calça e uma camisa no corpo e segue para pegar a condução, assim, meio como se fosse um robô. A verdade é que não havia muito que fazer em função daquela palpitação. Fui para o ponto, peguei o velho 7653 e procurei o lugar de sempre para ver se recuperava um pouco do sono perdido. Consegui tirar uma boa soneca. Tive até um sonho mau, com dois mal-encarados assaltando a condução. Quando o ônibus chacoalhou um pouco mais, eu acordei, olhei para frente e pude ver a realização do meu pesadelo. Estranhamente, a primeira coisa que me passou pela cabeça foi aquela propaganda da TV Globo, que aparece quando estão chegando o Natal e o Ano Novo, e diz "Nossos sonhos serão verdade, o futuro já começou". Coisa de louco. Porém, a segunda coisa que me veio à mente já era conseqüência dos gritos dos marginais, que mandavam todo mundo ficar calado e com a cabeça para baixo. Tremi na base e comecei a rezar. Acho que todos os passageiros estavam tremendo e rezando. Dizem que todo mundo pensando a mesma coisa ao mesmo tempo cria uma espécie de corrente telepática que faz a coisa acontecer. Pois é. Quando os ladrões estavam terminando de fazer a faxina, apareceu uma blitz na avenida, que obrigou o motorista a parar para revista. Os dois malandros, acuados, gritaram, dizendo que a polícia não entraria no ônibus. Pegaram dois reféns. Adivinha quem era um deles? Sofri um bocado, mas o fim não foi trágico. A polícia conseguiu, através de uma negociação paciente, convencer os bandidos a entregarem as armas. Finalmente, os passageiros se livraram daquele pesadelo medonho. Fomos depor e depois nos liberaram. Eu e o camarada, que estava sentado ao meu lado no ônibus, saímos conversando sobre as atrocidades da vida urbana nas grandes metrópoles. O que era surreal há trinta anos, agora era parte da nossa rotina. O meu amigo estava revoltado com tudo aquilo, inclusive com a situação pela qual eu passei. Quando já estávamos bem longe de qualquer coisa que pudesse lembrar o episódio, falei para o companheiro de cadeira de ônibus que seguiria dali para o meu trabalho. Levantei a mão para me despedir, olhei para o seu rosto e encontrei um sorriso amarelo, numa boca que dizia que estava desempregada há três anos e, por isso, estava fazendo aquilo. A arma em punho sacramentou a intenção. Tirei a carteira, tirei o tênis, tirei o relógio de feira. A mão trêmula do ex-camarada pôs os objetos numa sacola e ele saiu correndo.

O pesadelo real havia terminado. Sentei-me no meio-fio, pensei no meu filho e verti algumas lágrimas. Dessa vez, me veio à mente um trecho da letra de uma música da década de setenta, que dizia "Vai amar a liberdade, só vai cantar em tom maior. Vai ter a felicidade de ver um Brasil melhor". Limpei a água salgada que já batia nos meus lábios e segui a pé para a sapataria.

Apresentando-me

FELIPE CERQUIZE é engenheiro químico pós-graduado em Marketing. Com forte atuação na vida cultural do Rio de Janeiro, lançou, em 1996, o livro RHUMOR, coletânea de contos classificada pela comissão julgadora do PRÊMIO NESTLÉ DE LITERATURA no ano de seu lançamento. Em 1999, lançou o CD de MPB chamado LÉGUAS, com apresentação do compositor GUTTEMBERG GUARABYRA. Em 2003, foi classificado em primeiro lugar no concurso de poesias da FACULDADE EDUCACIONAL UNIFICADA CAMPOGRANDENSE (RJ) com a obra intitulada POEMA TRANSVERSO, entre as mais de 400 poesias inscritas. Também em 2003, classificou-se em sexto lugar no festival de música popular do CLUBE DOS COMPOSITORES DO BRASIL com a música APÁTICO PACTO, selecionada entre as mais de 1600 canções concorrentes. Em 2005, lançou o livro CONTOS SINISTROS na XII BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO RIO DE JANEIRO, com prefácios de TIBÉRIO GASPAR e de REGINALDO BESSA. Em 2006 teve a sua música COMUNHÃO inserida na trilha sonora da novela ALÔ ALÔ MULHERES, exibida na www.alltv.com.br. Em 2007, teve destaque artístico nas seguintes participações:

Junho - Foi classificado em primeiro lugar no concurso BALADA DO IMPOSTOR, promovido pelo poeta GERALDO CARNEIRO, com um texto sobre a morte de PAUL MCCARTNEY.

Setembro - Lançou o livro de poesias CONVERSA RIMADA, em parceria com a cantora, compositora e poetisa LUHLI, na XIII BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO RIO DE JANEIRO.

Novembro – Teve três músicas de sua autoria selecionada para a trilha sonora da web novela NOS TEMPOS DA GAROA (
www.spetaculos.com.br)

Dezembro - Classificado em primeiro lugar no concurso de poesias da FACULDADE EDUCACIONAL UNIFICADA CAMPOGRANDENSE (RJ) com a obra intitulada COMO NOSSOS FILHOS, entre as mais de 250 poesias inscritas.


Como melodista e letrista, possui mais de trezentas obras, incluindo parcerias com KIKO FURTADO, LUHLI, LUIZ CARLOS SÁ, PHILIPPE BADEN POWELL, TAVITO e ZÉ ALEXANDRE, entre outros.

Escreve regularmente para diversos sites da internet.