22/05/2014

CRÔNICA ESCRITA EM 2004 A PEDIDO DE ZÉ RODRIX

Hoje faz exatos 5 anos do falecimento de Zé Rodrix. Abaixo, está uma "crônica" que escrevi em 2004, cinco antes dele falecer, na qual, a pedido do próprio Zé, anuncio a sua morte. A causa mortis informada na brincadeira coincidiu com a real, mas, infelizmente, não consegui chegar perto da logevidade desejada para esse grande artista, que sempre esteve à frente do seu tempo.

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O ÚLTIMO ARTISTA DO SÉCULO XX

Felipe Cerquize

 

Morreu ontem, vítima de um ataque cardíaco fulminante, o cantor e compositor Zé Rodrix. O jornalista Dênis de Bulhões e Carvalho, que o entrevistava na biblioteca de sua casa no momento do colapso, disse que seu comportamento começou a se alterar, quando indagado sobre as lembranças que lhe traziam algumas músicas por ele compostas na segunda metade do século XX.

Filho de um mestre-de-banda, José Rodrigues Trindade estudou no Conservatório Brasileiro de Música e na Escola Nacional de Música, onde aprendeu, além de teoria musical, harmonia e contraponto, piano, acordeão, flauta, saxofone e trompete. No remoto ano de 1966, integrou o conjunto MomentoQuatro e, com esse grupo, no ano seguinte, apresentou-se no III Festival de Música Brasileira da extinta Televisão Record, acompanhando os artistas Marília Medalha e Edu Lobo na interpretação da famosa “Ponteio”. No início da década seguinte, tornou-se integrante do grupo chamado Som Imaginário, procurando, porém, conciliar sempre as suas atividades em equipe com a sua trajetória como compositor. "Casa no Campo", sua mais conhecida canção, ganhou o festival da cidade de Juiz de Fora, em 1971, e foi gravada com grande sucesso pela inesquecível cantora Elis Regina. Atuou também ao lado dos artistas Luís Carlos Sá e Guttemberg Guarabyra, formando o trio que lançou o segmento que na época ficou conhecido como Rock Rural, além de ter participado do grupo pré-punk Joelho de Porco. Na evolução de sua carreira como músico, teve outras ocupações: foi jornalista, professor, cozinheiro e escritor, tendo lançado o livro "Diário de um Construtor do Templo", em 1999, e, em 2009, o grande “best seller” “Mestre Jonas”, título homônimo de uma composição de sua autoria, que antanho também foi de muito sucesso. Entre os anos de 2010 e 2021, morou em Amsterdã, onde criou a banda vanguardista “Forbiden”, que transformava melodias oriundas de Portugal em Rock pesado, para divulgação em países europeus que não tinham o latim como língua de origem. Em 2022, voltou para o Brasil e foi o principal articulador das comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna. Desde 2025 vinha residindo em Matinhos, cidade litorânea do Paraná, que hoje é o grande polo cibernético-cultural da Região Sul do Brasil, graças a todos os empreendimentos por ele administrados nessa região, nos últimos 50 anos.

“Gostaria de ter a causa mortis preferida do meu pai, ou seja, ser assassinado aos 98 anos de idade com um tiro dado por um marido ciumento que me tivesse pego em pleno ato com a mulher amada”, disse em uma entrevista para a Folha de São Paulo, no início deste século. Mas a vida lhe permitiu muito mais. Nascido em 1947, morre aos 144 anos no pleno gozo de suas faculdades mentais, deixando três mulheres, vinte e sete filhos, sessenta netos, cento e vinte e cinco bisnetos e um número incontável de tataranetos.

Atendendo ao pedido do próprio Zé Rodrix, seu corpo será cremado sem que ninguém presencie. As cinzas serão levadas para um iate que se encontra atracado no Porto de Paranaguá, de onde deverá seguir 100 milhas náuticas mar adentro, junto com mais duas embarcações, a fim de que sejam reverenciadas por aqueles que foram textualmente convidados a comparecer, entre os quais estão todas as pessoas que participaram do lançamento de pelo menos um de seus livros, alguns inimigos remanescentes, para que constatem e brindem a sua morte, e todos os parentes e amigos que se predisponham a enfrentar um ritual enfadonho ao sabor do sol, do mar e do vento. O artista sempre expressou o desejo de que no seu ritual de passagem, em hipótese alguma, fossem tocadas composições de sua autoria. Na programação deverão constar somente músicas de uma festa popular que existiu até fins da segunda década deste século, que se chamava Carnaval. As músicas selecionadas são chamadas de marchinha e marcha-rancho e foram muito difundidas entre as décadas intermediárias do século passado.

Segundo informações do advogado da família, está expresso em testamento do artista que, do patrimônio de duzentos milhões de dólares por ele acumulado, nada ficará para aqueles que com ele tenham algum grau de parentesco. A família já disse que entrará com recurso na justiça, tão logo as coisas se normalizem. “Ele era adepto da política do VAI TRABALHAR VAGABUNDO”, disse lacrimejando Ju Rodrix, tataraneta do compositor e filha de Jazz Rodrix.

“Quando morrer, tentarei ser “crooner” da grande orquestra de Jazz do Inferno, que nos meu sonhos identifico como SATANAZZ ALL-STARS”, falava cada vez que despertava com a sensação de que não teria muito tempo de vida, o que lhe era freqüente nos últimos 70 anos.

As cinzas serão jogadas no mar, exatamente às dez horas da manhã deste domingo. O maior de todos os seus desejos era o de ser completamente esquecido no dia seguinte ao de seu enterro. Provavelmente, este é o único de todos os seus pedidos que não será atendido, pois o esquecimento independe da vontade livre das pessoas.

Descanse em paz, Zé. E se por um acaso escutar, no meio do caminho, um som de jazz com arranjos de Ray Connif, pegue o seu astrolábio cibernético e reavalie a rota para que não chegue ao marasmo dos céus.

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