21/05/2014

O AUTONECROLÓGIO ESCRITO POR ZÉ RODRIX

  Zé Rodrix em foto tirada por Toninho Vaz

Um texto que escrevi, abordando o boato histórico sobre a morte do Paul McCartney, foi motivo para uma brincadeira com o querido amigo Zé Rodrix, dez anos atrás (2004). Quando enviei o texto para uma lista de discussão, o Zé, no jeito contundente e irreverente que lhe era peculiar, pediu para que eu escrevesse uma história noticiando a sua própria morte. Aí, eu fiz. O título era "O último artista do século XX" e no texto começo descrevendo feitos verdadeiros de sua vida, depois avançando no tempo e descrevendo outros tantos que tirei da imaginação. Na minha história, ele morre aos 144 anos de idade, no longínquo 2091, pois essa foi a forma de atender o pedido dele e ao mesmo tempo brincar com coisa tão séria sem passar o sentimento de medo ou a percepção de perigo.

E como o Zé Rodrix era uma pessoa realmente contundente, irreverente e criativa, não satisfeito, ainda me enviou um autonecrológio, abordando os principais assuntos que estavam no meu texto e outros que provavelmente eram desejos verdadeiros seus. Transcrevo a seguir:

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"Felipe: Em resposta a seu completíssimo questionário passo-lhe às mãos minhas especificações para passamento e eventual necrologio.

Há alguns anos, gostaria de ter a causa-mortis preferida de meu pai: assassinado aos 98 anos de idade com um tiro dado por um marido ciumento que o tivesse pego em pleno ato… mas hoje não mais. Pode ser de fulminante ataque cardiaco, dentro da minha biblioteca, perto o suficiente da família e dos amigos, mas afastado o bastante para que, alertados pelos cachorros da casa, já me encontrem morto, com um sorriso nos lábios. Pode sepultar-me em pleno mar, sob a forma de cinzas, ja que não poderei ser sepultado in totum no jardim da minha casa. Se conseguirem isso, no entanto, que não cobrem entradas para visitação, à moda do irmão da princesa: deixem que além das pessoas os passarinhos e os animais da casa se refestelem no lugar, renovando diariamente o eterno ciclo da natureza. Ao enterro devem, através de convite formal, comparecer todos que foram aos meus lançamentos de livro: nada mais parecido com um velório do que isso. Peço parcimônia nos eflúvios emocionais: já as risadas devem ser francas e sem limite. Creio inclusive que prepararei com antecedência uma fita de piadas gravadas para animar o velório e manter o pessoal na boa. Como dizia o Bozo, “sempre rir, sempre rir….” Lá, só deixarei a mim mesmo: mesmo os inimigos que comparecerem para ter certeza de que estou realmente morto podem voltar para casa em paz. Não pretendo puxar a perna de ninguém à noite e nem assombra-los depois de morto. Já os amigos podem contar comigo: havendo vida após a morte, volto para avisar, da maneira mais prática e menos assustadora que me for possível. A cremação deve ser feita depois que todos forem embora cuidar de seus próprios afazeres: enfrentar as chamas do forno terrestre já será um grande intróito para a vida eterna. Se conseguir, tentarei ser crooner da grande Orquestra de Jazz do Inferno, vulgarmente chamada de SATANAZZ ALL-STARS: como já vou chegar la tenente ou capitão, dada a minha imensa taxa de maldades realizadas sobre a Terra, creio que não será difícil. Meu castigo certamente será cantar MPBdQ por toda a eternidade, mas mesmo com isso ainda se pode encontrar algum prazer, assim na terra como no inferno….é o que veremos a seguir. No enterro podem tocar de tudo, menos as musicas que eu tenha feito. Minha morte servirá certamente para que se livrem não apenas de mim mas também de minhas obras. Os herdeiros também não merecem ouvi-las, sabendo que nada herdarão de minha lavra, porque, sendo eu adepto da politica do VAI TRABALHAR, VAGABUNDO, como meu pai fez comigo, já tomei providências para que essas musicas não lhes rendam nem um tostão furado. Sendo um velório moderno, recomendo musicas de carnaval antigo, as indiscutíveis, claro, com algumas discretas serpentinas e confetes jogadas sobre o caixão, fechado, naturalmente. Morrer num sábado à tarde, ser enterrado num domingo antes do almoço, e estar completamente esquecido na manhã de segunda, sem atrapalhar a vida profissional de ninguém: eis a perfeição que desejo na minha morte.

Muito grato.

beijos

Z"
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Sinto pelo ser humano, que conheci e com quem tive a oportunidade de me relacionar por cerca de cinco anos (2004 a 2009). Sinto pela falta que ele faz à cultura do nosso país. Infelizmente, acabamos contrariando um de seus desejos, pois, até hoje, continuamos com fortes lembranças de seu trabalho artístico e de sua personalidade marcante. Em 22 de maio de 2014, completam-se cinco anos sem a presença de Zé Rodrix. 

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