12/10/2008

A PRIMEIRA IDADE

A infância é a isca da vida. É a fase em que se encara o belo e o mórbido com uma boa dosagem de contemplação. Ver a felicidade nos olhos de um bebê já é uma prova de que não é só do ser humano que vem a tentativa de sedução para que seus descendentes queiram perpetuar a espécie. Não há a menor dúvida de que Deus é o grande regente desses estímulos. Então, ao homem resta aproveitar da melhor maneira possível essa oportunidade, levando da infância todas as impressões que servirão, de uma maneira ou de outra, às suas responsabilidades futuras. Quanto mais idade temos, mais nos envolvemos em relações complexas e desnecessárias, que inconscientemente refutamos. No meio desse desespero, clamamos pela volta no tempo, para um período de nossas existências em que um sorvete superava quaisquer outros valores materiais. Onde sempre havia tempo hábil para perceber as coisas simples. Não é possível singrar a vida adulta sem que a infância não sirva de bússola em alguns momentos dessa louca aventura.

Acordar ao lado dos pais, não entender o que não interessa, reunir os amigos da rua, esculhambar os opressores da vizinhança, não ter medo de dizer que tem medo e tantas outras coisas, que, por serem espontâneas, contribuem para que o homem não se esqueça jamais dessa fase da vida. Dependendo do equilíbrio emocional, têm-se casos de loucura extrema. Pessoas vivendo em um mundo particular, em função de recordações. Outras, recalcadas, desabam seus ódios em infanticídios, tentando impedir que novas gerações vivam seus antigos deleites. Enfim, as marcas estão presentes em todos e depende, tão somente, de como cada um reagirá, transparecendo ou não suas memórias. Alguns trazem mágoas brutais, que nunca sumirão de suas consciências. São aqueles conhecidos por não terem tido infância. Que não tiveram casa, família, alimentação saudável e ajuda na hora certa. Que tiveram de ficar vendendo bala e amendoim nas ruas ou suplicando colaborações mínimas aos adultos que cruzavam seus caminhos. Que acabaram se viciando pelos becos e assumindo a perspectiva de contribuição social nula ou mesmo negativa como cidadão. A realidade nos mostra que, embora muitos tentem dizer que o caráter de uma pessoa se mantenha em quaisquer circunstâncias, isto não é verdade. Lembremo-nos de que a primeira coisa herdada da natureza é o instinto de sobrevivência, que ignora a racionalidade. Os animais devoram-se indiferentemente, preocupando-se só com o momento de ser ou de ter a presa. O homem diferencia-se por questionar o fato.

Podemos, então, sonhar com os filhos doutrinando os pais. Fazendo as leis, escrevendo quais os direitos e os deveres dos cidadãos, mostrando-lhes todas as sensibilidades perdidas. Deixando as coisas tão ininteligíveis, que se perderiam todos os conceitos e preconceitos aprendidos. Ensinando a não correr, a não ser alucinadamente ambicioso, a ter somente impulsos. Talvez complicasse mais a situação, porém seria um giro completo, formando uma revolução, onde a infantocracia governaria com uma coroa de chocolate e um cetro em forma de pirulito. Onde o armamento bélico se constituiria de canhões com balas de hortelã e bombinhas de são-joão. Os adultos, naturalmente, ficariam revoltados, com ódio saindo por todos os buracos do corpo e planos de contra-revolução. Sentindo-se oprimidos e sem direitos. Permanecendo impotentes diante de um exército de soldadinhos de chumbo. Gritando por Deus, sem que este os atendesse. Enfim, privando-se definitivamente das decisões que os aniquilaram mansamente.

A grande vantagem de um escritor é que ele pode conduzir a sua vida e a dos outros para onde bem entender, sem que haja prejuízo para ninguém. É pouco provável que as coisas mudem, pois a muleta que sustenta esse corpanzil é feita em madeira de lei. Porém, de vez em quando, aparecem uns obstinados por aí, que conseguem fazer seus sonhos virarem realidade. Quem, por exemplo, conseguiria imaginar um país comunista fincado a poucos quilômetros da maior potência capitalista por mais de quarenta anos? Ninguém melhor do que a criança para ter aspirações. Por isto, mesmo que estejamos velhos e sem forças, enquanto pudermos presenciar a vitalidade dos infantes, nossas existências certamente continuarão valendo a pena, pois esta é a forma de vermos o prosseguimento dos sonhos que um dia embalaram as nossas atitudes.

Felipe Cerquize

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